Em tempos onde certos segmentos sociais querem colocar a religião dentro
do "armário".
Por Rodrigo Constantino
“O
maior perigo de uma visão da história como um progresso infindável é a
combinação tóxica de arrogância e auto-ilusão”. (D.A. Carson)
Antes de começar este texto, uma pequena
confissão: sou ateu. Não tenho religião e não acredito em Deus, ao menos não da
forma convencional das principais religiões. Além disso, sempre valorizei o
estado laico, a divisão entre estado e igreja tão cara a muitos “pais
fundadores” americanos, inspirados no Iluminismo.
Dito isso, não posso ignorar que o pêndulo
exagerou para o outro lado, como em quase todo o resto. O estado laico passou a
se confundir com um estado antirreligioso, e a não intervenção das religiões
nas questões estatais deu lugar ao excesso de intervenção do estado em assuntos
religiosos.
Já mencionei em alguns textos o livro The Intolerance of Tolerance, do teólogo canadense D.A. Carson. Vou, uma vez mais, usá-lo
como fonte de reflexões. Afinal, sua tese tem tudo a ver com o assunto em
pauta: os “tolerantes”, em nome de sua “infinita” tolerância (na verdade,
aprovação irrestrita), tornaram-se os mais intolerantes, especialmente com os
religiosos.
Não é algo novo. Os jacobinos se julgavam
detentores da Razão (assim mesmo, com R maiúsculo), e guilhotinaram vários
padres, atacaram as igrejas e transformaram Notre Dame no “Templo da Razão”.
Mexeram até no calendário. Falavam em nome da “ciência”. O resultado foi o
Terror.
O mesmo para seus herdeiros bolcheviques: em
nome da ciência, os ateus comunistas aboliram as religiões, e todos tiveram que
aderir ao mesmo Deus: o estado. Milhões foram sacrificados no altar da utopia
de um “mundo melhor” e da construção do “novo homem”: racional, abnegado, altruísta,
e livre do preconceito religioso.
Pois bem: chegamos ao ponto em que o sujeito
dizer “God bless you” (Deus lhe abençoe) após um espirro vira caso de justiça.
Não pode haver uma cruz em locais públicos, muitos querem tirar a citação de
Deus na moeda americana, nenhuma empresa pode mandar cartões com “Feliz Natal”
pois pode ser ofensivo para os não crentes, e por aí vai.
A religião passou a ser vista como algo
ruim, e em nome da tolerância, os “tolerantes” aceitam a liberdade religiosa, desde que restrita à esfera privada. Em outras palavras, o sujeito pode crer em
Deus e em livros sagrados, mas só não pode levar suas crenças para o debate
público, para a política, para sua visão moral de mundo.
Isso me parece um tanto absurdo. Afinal, de
onde vem nossa moral? Ora, cada um terá uma resposta, e em tempos de
relativismo moral exacerbado, vale tudo. Mas o fato é que só podemos
desqualificar por completo valores morais advindos das tradições ou das
religiões se assumirmos que é possível obter um código de valores morais estritamente
racional, científico. Olha
o perigo da Razão aí novamente, da “arrogância fatal” (Hayek), da intolerância
dos “tolerantes” modernos.
Aborto, por exemplo, pode ou não pode?
Alguém realmente pretende responder isso apenas com base na ciência? Boa sorte. Já vi gente
inteligente chamar o feto humano de “parasita” usando exclusivamente a lógica.
Como disse Karl Kraus, “Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar
rédeas soltas à tua razão”.
Os seculares assumem que sua visão moralista
é superior, pois calcada na Razão, mas no fundo enfrentam dificuldades
igualmente insolúveis para certos dilemas. Afinal, são dilemas morais
não é à toa. Acabam sendo seletivos em sua “tolerância” ampla, adotando
posturas muitas vezes contraditórias (toleram o chargista que faz desenho
“ofensivo” de Maomé ou os muçulmanos intolerantes com tais charges pois não
querem se sentir ofendidos?). Defendem uma agenda que se diz neutra, mas nunca
o é.
Como estão convencidos de sua superioridade
por conta da suposta neutralidade, tornam-se mais intolerantes com o passar do
tempo. Assumem que automaticamente a postura secular garante maior tolerância,
o que é uma falácia. Conheço ateus extremamente intolerantes (vide ATEA e todos
os ateus militantes), e cristãos altamente tolerantes com pontos de vista
divergentes.
E chegamos ao ponto central do texto: com
essa convicção na própria superioridade, e com essa aversão às religiões
(especialmente ao Cristianismo), os seculares acabaram criando não um estado
laico, mas um estado antirreligioso sob um novo Deus, que é o próprio estado
absolutista. Ele pode tudo, inclusive se intrometer nos assuntos estritamente
religiosos.
Exemplo? O casamento religioso e a aceitação
de padres gays deveriam ser assuntos decididos somente dentro da própria
religião. O que o estado tem com isso? Se uma religião particular não quiser
aceitar casamentos de homossexuais, isso não seria um direito seu? Se um bispo
católico declarasse alguma pessoa impedida de receber a Comunhão em sua diocese,
pelo motivo que fosse, e o estado interferisse, isso não seria uma quebra da
separação entre estado e igreja? É intolerante a igreja que age assim dentro de
suas próprias crenças, ou o estado que não tolera isso e invade sua liberdade
para impor sua visão estreita de mundo?
Outro exemplo? Digamos que um médico
cristão, que ainda por cima prestou o juramento de Hipócrates, não aceite, por
crença pessoal, praticar a eutanásia ou um aborto. Será que o estado teria o
direito de, em nome da “tolerância”, obrigá-lo a agir diferente, contra suas
próprias convicções morais? Já há casos em países desenvolvidos, que permitem
aborto e eutanásia, onde estas questões foram parar na Justiça, e a tendência é
claramente contrária ao direito individual do médico. Pergunto: pode haver algo
menos tolerante do que a coerção estatal impedir o direito de um médico de se
recusar a “matar um bebê”, sendo esta sua crença mais íntima?
São questões, como podemos ver, bastante
delicadas, complexas, que envolvem valores e direitos conflitantes. Haverá uma
região cinzenta, principalmente quando crianças estiverem no meio. Pode um pai
muçulmano, em pleno
Ocidente , impor o uso da burca à sua filha, ou seu direito
individual deve falar mais alto? Pode um pai se recusar a aceitar transfusão de
sangue para a filha, pois ela é Testemunha de Jeová? E por aí vai.
Teremos, sem dúvida, uma enorme quantidade
de casos sem resposta fácil. Mas o que eu gostaria de chamar a atenção, aqui, é
dessa tendência cada vez mais intolerante dos modelos seculares, que parecem
desejar varrer a religião do mapa, ou ao menos para um cantinho isolado e
insignificante da individualidade do sujeito, sem levar em conta que essa
crença pode, para ele, ser a coisa mais relevante do mundo, e que ele tem o
direito de levar seus valores para o debate no espaço público.
Então, quem é o tolerante e o intolerante
nessa confusão toda?
Fonte: CONSTANTINO, Rodrigo.
Do estado laico ao
antirreligioso. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/cultura/do-estado-laico-ao-antirreligioso/>.
Acesso em: 20 fev. 2013.
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